Vinte anos entre floras e fontes…
Ela é de palavras suficientes. Nem muitas, nem poucas. Suficientes. Também não é fácil cultivar seu sorriso. Ele tem um tempo para surgir, vem aos poucos e pode ser permanentemente controlado com certa facilidade. Sua docilidade não aparece de imediato, mas surge em pequenos gestos de cuidado com o próximo: uma lembrança, um chocolate, um mimo delicado.
Seu nome fala sobre sua essência, Flora, que há 20 anos floresce e faz florescer, junto a uma enorme rede de profissionais do desenvolvimento, o Instituto Fonte para o Desenvolvimento Social. Nesse dia 17 de maio, data em que essa fonte completa, oficialmente, 20 primaveras, comemoramos com uma logomarca especial e relembrando/projetando a história dessa organização, a partir da voz de quem esteve presente durante todo esse período.
Flora Lovato contou sobre o passado e realizações. Mas também tratou de perspectivas para o futuro organizacional, em um momento ainda difícil para projeções futuras no campo social.
De especial para esse momento, Flora carrega sua voz em sintonia com as de outras quatro mulheres comprometidas com a missão do Instituto Fonte, sua renovação e seu olhar profundo para a prática social reflexiva como proposta de intervenção e aprendizagem.
Vinte anos de parceria entre Flora e Fonte. Vinte anos de Fonte contados por Flora. Vinte anos de Flora contados pelo Fonte.
De onde chego…
Eu chego no Instituto Fonte no fim dos anos 90. O contexto externo era muito propício à inserção das empresas, das iniciativas privadas e fundações no setor social. Havia uma necessidade em aprender a dialogar com as organizações sociais e era comum a indagação, pelo mundo corporativo, sobre a capacidade de gestão das organizações.
A entrada das empresas no setor social traz recursos e vem também atrelada à capacitação das ONGs em sua gestão, e esse foi meu viés profissional naquele momento. Eu trabalhava para que as organizações aprimorassem a sua gestão.
Logo depois, quando o Instituto Fonte se funde com o Instituto Christophorus, tenho contato com uma nova visão de mundo, que olha para as trajetórias das organizações e aponta como maior desafio para elas a compreensão em torno de seu próprio caminho, para que o próximo passo desta trajetória seja dado com assertividade, com correção, com primor. Eu saio de um lugar onde a gestão era o centro e vou para outro no qual a gestão transforma-se em mais uma ferramenta para o desenvolvimento. A partir daí, faço vários cursos e formações para me apropriar desse novo jeito de olhar o mundo e compreender as organizações. E a transformação que eu percebia em mim, assim como nas organizações com as quais eu trabalhava, era muito maior do que aquele que percebia ao trabalhar apenas a partir da qualificação de sua gestão.
20 anos praticando o desenvolvimento de organizações
Nesses 20 anos, o Instituto Fonte realizou muito em consultorias, desenvolveu programas de formação e foi uma organização bem inovadora na abordagem que adotou para seus diferentes campos de atuação.
O Profides: profissão desenvolvimento, que está entrando em sua décima edição, inspirou vários participantes a criarem também iniciativas a partir desse olhar social de desenvolvimento, sobre as organizações e o contexto social.
Acho que devo falar do GRA – Grupo Recife de Aprendizagem como um grupo do Nordeste e que carrega a identidade do Profides, com integrantes das edições II, IV e VIII, e que hoje é um coletivo muito sólido capaz inclusive de organizar uma Pós-Graduação sobre a prática social reflexiva, a primeira no Brasil. É um grupo que se forma como desdobramento de um programa do Fonte, de uma prática do Fonte e que permanece unido para praticar, no Nordeste. E é importante diferenciar essa natureza de identidade, do qual emerge também um Fonte no mundo que acontece a partir desses coletivos que surgem livremente. Um Fonte que se viu multiplicado em diversas outras iniciativas.
Então, acho que o Profides e o Artistas do Invisível são programas muito inovadores, que vão servir de semente ou inspiração para outras iniciativas como o Instituto Geração, o Programa Lidera, da Ação Empresarial para a Cidadania, e vários outros projetos.
O Artistas do Invisível consolida um grupo de pessoas aqui no Brasil que vem sendo o que hoje a gente chama de profissional da prática social reflexiva, que cria uma dinâmica, com disciplina e rigor, voltada para seu próprio desenvolvimento como processo para que o mundo e as organizações também possam se transformar. Vale lembrar que a Noetá foi um parceiro importante no desenvolvimento de novas turmas do Artistas e em outras atividades, como na oficina do Ativismo Delicado.
Para ajudar organizações a ajudarem o mundo a mudar, o próprio praticante tem que contribuir com seu próprio desenvolvimento.
Consultorias: prática, aprendizagem e desenvolvimento
Outro ponto muito inovador e inspirador veio das consultorias, realizadas por esse corpo muito sólido de consultores para os mais diversos tipos de organizações, empresas, a ponto de precisarmos expandir o grupo inicial. Em um determinado momento, ganhamos força e presença no campo social e ficou difícil cuidar do tamanho que o Fonte adquiriu e acabamos perdendo vitalidade institucional dentro daquele formato de atuação.
Hoje, o grupo de pessoas que está no Fonte são cinco mulheres que têm em comum o fato de terem participado de um programa de pós-graduação dentro da prática social reflexiva e possuem o desejo de continuar fazendo uma diferença significativa no mundo por meio do Fonte.
O Fonte, como organização, precisa ser um esteio. Precisa praticar dentro de si o que ele faz para fora. O que a gente prega para os nossos clientes e para os nossos parceiros também deve viver dentro do Instituto Fonte, como organização.
Lembrando de consultorias significativas, acho muito relevante pontuar um processo que nos foi solicitado pela Unesco, em que o Instituto Fonte foi convidado a trabalhar a gestão de 240 organizações a partir dessa visão de desenvolvimento. Com a consultoria também surgiu a Coleção Caminhos para o Desenvolvimento de Iniciativas Sociais, que está disponível para download.
Produção e sistematização de conhecimento
As publicações sempre tiveram relevância na trajetória do Instituto Fonte. O primeiro grande marco é a Coleção Gestão e Sustentabilidade, um conjunto de livros que fez diferença em um momento em que havia pouca publicação voltada para organizações da sociedade civil ou que tratasse desse tema de forma específica para as ONGs. Alguns livros dessa coleção foram reeditados três vezes. Vários ainda continuam sendo usados como referência, seja no trabalho, seja em pesquisa. O ICE – Instituto de Cidadania Empresarial – que também comemora 20 anos em 2019, foi a organização que acreditou nesse trabalho e apoiou financeiramente sua realização.
O ICE também apoiou o Projeto Gestão, que realizamos na mesma época, com 25 instituições que viveram significativos processos de desenvolvimento, envolvendo desde sua governança até sua comunicação, mobilização de recursos e gestão financeira. O apoio do ICE nessa fase inicial foi crucial para o fortalecimento das ONGs e para a construção do vínculo entre elas e a iniciativa privada que começava a dar passos mais consistentes no campo social. Nossa crença nessa época, e que continua até hoje, é a de que com as publicações podemos alcançar pessoas e grupos que, de outra forma, não teriam acesso a esse conhecimento.
Outra publicação importante foi a tradução para o português do Artistas do Invisível, do Allan Kaplan, que traz, de uma forma muito bonita, o que significa esse outro jeito de olhar o mundo, não só aplicado para organizações, mas para pessoas nas organizações. Também é possível citar o livro Desenvolvimento de Iniciativas Sociais, de Christopher Schaefer e Tyno Voors e o Princípios da Consultoria de Processos Para Construir Relações que Transformam, de Edgar H. Schein, que são obras que expressam o jeito nosso de fazer consultoria, nossos princípios e visão de mundo. Acontece o mesmo como toda a linha de publicações ligadas à área da Antroposofia, como o Confiança, Doação, Gratidão: Forças construtivas da vida social, Formação de Juízo e Doze Dragões em luta contra iniciativas sociais, de Lex Bos.
Allan Kaplan: 20 anos e parceria
No caminho da construção de processos a partir da “prática social reflexiva”, houve uma parceria que marcou toda nossa história e que começa ainda com o Cristophorus. Nesses 20 anos, construímos muitos diálogos com Allan Kaplan e o Proteus (organização criada e gerida por Allan e Sue Davidoff na África do Sul). A primeira coisa que ele faz conosco é nos ajudar a cuidar do Fonte.
Uma outra coisa foi a inspiração e o apoio que ele nos deu no desenho do Profides, e do Artistas do Invisível, este último a pedido de Marina Magalhães, que era nossa colega de Fonte na época. Com esses programas nossa relação se fortalece e ele se aproxima de outros outros atores aqui no Brasil. Claro que ele caminha com as próprias pernas, mas a gente, de certa forma, vai abrindo canais para outras organizações, outras pessoas dialogarem com Allan e sua teoria.
Essa parceria foi crescendo e hoje três grupos de pessoas concluíram o Artistas. Realizamos várias oficinas em diferentes cidades do país e inclusive a série Delicado Ativismo em que Ana Biglione, da Noetá, foi parceira. E mais recentemente realizamos um programa de pós-graduação no Recife a partir da iniciativa do GRA – Grupo Recife de Aprendizagem, certificado pela Alanus University. As parcerias com o GRA e com a Noetá ainda frutificam e com elas vamos criar outras propostas bem sólidas para o futuro.
Avalio que juntas, essas organizações (Proteus, Fonte, GRA e Noetá) estão batalhando muito para que no Brasil se tenha um corpo de profissionais, praticantes sociais reflexivos, além de estarem ajudando esse corpo a se reconhecer e a se fortalecer.
O Fonte e o agora…
Allan contribuiu muito com toda nossa trajetória e achamos importante contar novamente com ele em 2018. Ele nos fez duas perguntas cruciais: se o Fonte ainda poderia fazer sentido para o mundo e, em fazendo, se haveria um grupo dentre nós que aceitaria colocar energia e empenho em renová-lo.
Entendemos que se a organização fosse continuar ela só valeria continuar se ela fizesse sentido para o mundo, se a gente de fato visse que iríamos fazer algum tipo de diferencial para as organizações e para o campo social. Tudo que a gente quer estar falando pra fora era algo que precisava renascer, uma fogueira que precisaria ser reacendida dentro do próprio Fonte. Teve um trabalho conjunto, como Fonte, de aprendizagem e ter a disciplina em torno dessa prática como central. Tanto no trabalho que a gente faz no mundo, como no trabalho que a gente faz pra dentro do próprio Fonte. Isso significa, primeiro, assim como dizemos pro nosso cliente, vamos observar a sua organização, o que está acontecendo, quais são os fatos, quais são os padrões seguidos ou criados, era necessário que a gente também olhasse pra esses aspectos dentro do Fonte: quais são os sinais da nossa prática? Como podemos cuidar do que parece que está se estagnando? Onde parece que tem vida e como a gente pode cuidar da vida?
As cinco mulheres que compõem o Instituto Fonte acreditaram e acreditam nisso. Além de terem participado conjuntamente da Pós-Graduação em Prática Social Reflexiva, partilham a crença de que organizações como o Instituto Fonte foram e continuam sendo relevantes no contexto social, particularmente hoje. Por isso, decidiram renovar a organização, mantendo inclusive alguns de seus programas. O Profides iniciou agora sua décima turma. Em breve, o conhecimento construído em torno dessa prática ao longo destes 20 anos também será disponibilizado com nossa escrita. Será uma publicação autoral, sobre nossas reflexões e aprendizagens e sobre esse jeito de atuar no mundo a partir de nossa própria experiência.
O mundo do Fonte e o mundo
Aqui no Brasil estamos vivendo um momento muito singular. Eu acho que em raros momentos vi tanto acirramento de forças acontecendo, tão baixa capacidade de diálogo, e vi tão pouca capacidade de as pessoas compreenderem o sentido do que elas mesmas estão fazendo e do que está emergindo no país, para o significado deste momento, principalmente em termos de políticas públicas: o que significa um programa como o Escola sem partido, o que significa acabar com o SUS entre tantas outras possíveis perguntas que poderia lançar. Enfim, acho que estamos com pouca capacidade de compreensão e de leitura sobre o sentido de nossas escolhas. E cada vez menos com capacidade de conversar, de dialogar, de ouvir, de se ouvir, de se compreender, e também de compreender o outro. Acho que nesse momento tem muita incompreensão.
Esse contexto mais amplo me diz que organizações como o Fonte, que ajudam outras a construir sentido sobre o que vem fazendo, a refletir e assumir consequências pelas escolhas que vem assumindo, de como seu jeito de pensar afeta e produz coisas no mundo, ainda são necessárias. Sinto que o mundo está dizendo que quem contribui para a criação de sentido e significado tem espaço para atuar no mundo.
Acho que também está sendo dito pelo mundo, pelas organizações, que esse não é o momento de atuação isolada. Não é o momento de se fazer coisas sozinhos, é o momento de se fortalecer nesse espírito de “ninguém solta a mão de ninguém”. A gente quer muito fazer junto a outras pessoas e com outras organizações… e uma dessas, por exemplo, é o Ficas, com quem estamos compartilhando sua casa e com quem estamos desenhando projetos novos. Queremos fazer junto com outras organizações, como Noetá e o GRA, com quem já trabalhamos, mas também com novas. Eu acho que a gente precisa fazer junto para criar o novo, o futuro que imaginamos e queremos.