Programa Fonte da Liberdade: algumas reflexões
O Instituto Fonte iniciou o ano de 2024 comemorando resultados e refletindo sobre aprendizados trazidos com a experiência do Programa Fonte da Liberdade. A iniciativa é uma jornada de autodescoberta e conhecimento, construído e trilhado por mulheres e lideranças do campo social que enfrentam situações análogas à escravidão moderna e sobre elementos, menos visíveis, do sistema que permitem sua existência e manutenção.
No Brasil, o programa foi realizado por meio da parceria entre Freedom Fund (Fundo da Liberdade, idealizadora da ação), e o Instituto Fonte. Agora, as duas organizações se preparam para realizar, em 2024, a segunda edição, que acontecerá com organizações do Sul e do Sudeste brasileiro. E, para isso, foi necessário refletir sobre o processo vivenciado durante a edição realizada durante 2023, na região Nordeste.
Alguns destaques do primeiro ciclo, levantados pela equipe de consultoras, têm relação com o lugar de aprendizagem que o programa proporcionou. Um deles refere-se ao campo das organizações que atuam contra a escravidão contemporânea. De acordo com Saritta Falcão Britto, uma das facilitadoras das atividades em 2023, foi muito revelador ouvir as situações, os fatos e as histórias que as lideranças vivenciam ou vivenciaram em suas vidas e organizações. “A realidade do trabalho escravo está na sombra. Dialogar com essas lideranças e organizações foi valioso e ampliou nossa compreensão sobre o tema, no sentido de criar lentes para ver uma questão invisível”, explicou.
“O programa auxiliou a perceber meu lugar na instituição, meu lugar no mundo, a importância da minha contribuição para o meu trabalho, as lutas coletivas, mas também valorizar a minha importância, me dar limites e cuidar da minha saúde mental.” (depoimento de participante)
Outro aspecto que desafiou as consultoras foi a perspectiva mais programática de uma ação implementada inicialmente na Índia e que precisou lidar com o contexto e realidade de aprendizagem de outros lugares e públicos, como o Brasil. “Cuidamos para preservar um currículo comum, global, de um programa que agora está chegando ao Nepal, procurando entender o quanto desse formato é universal e o quanto precisamos olhar para as especificidades locais”, abordou Helena Rondon, também facilitadora na Edição Nordeste.
O Fonte da Liberdade reforça uma abordagem voltada para auxiliar as/os participantes na percepção de sua prática enquanto liderança. Muitas dimensões invisíveis, como a história de vida, a estrutura social do patriarcado e da colonialidade (e seu papel central na construção de escravidão moderna), da cultura de classe, do próprio sexismo, marca a construção dessa identidade. E, diante deste fato, tornar visível elementos que estão subjetivos e, muitas vezes, são imperceptíveis é importante para entender como impactam na relação das pessoas, seja na família, na igreja, na escola, nas comunidades ou nas organizações. Para Saritta, “ajudar os participantes a perceberem a relação entre as identidades impostas pelo sistema e os traumas vividos em sua vida, o impacto dessas dinâmicas na reprodução inconsciente de um papel de opressor, vai permitindo que os participantes desconstruam comportamentos e ressignifiquem sua atuação como liderança transformadora”. Nesse sentido, o programa desenvolve uma abordagem de mudança sistêmica, que parte da percepção do modelo mental, das estruturas de poder, das conexões e relações a partir de uma reflexão sobre si e sobre suas formas de liderar.
“Foi forte a ideia de me perceber no lugar da centralização, de querer mandar… Aprendi a delegar funções e ouvir mais. Passei a perceber e querer que outras pessoas possam experimentar o meu lugar. Aprendi que é importantíssimo afirmar e trabalhar isso.” (depoimento de participante)
Relações de parceria: Com relação à parceria, 2023 foi um ano de construções de relações e confiança entre Freedom Fund e Instituto Fonte. “A gente encerra essa primeira edição com um forte reconhecimento do valor do programa e dos limites da relação de parceiro implementador, diferenciando melhor esse papel com o de prestador de serviço”, avalia Saritta. Para ela, existe confiança na capacidade das duas organizações de perceberem acertos e dificuldades para propor mudanças, cocriar o desenho do programa, incorporando elementos da prática social reflexiva e propondo ajustes em sessões específicas com cuidado e transparência no registro desses movimentos pedagógicos do currículo.
Assim, a edição de 2024, que agora acontecerá com organizações do Sul-Sudeste, começa com muitos aprendizados. “A gente chega com mais atenção sobre o que é importante ser cuidado, do que é necessário ser garantido em termos da diversidade da equipe de facilitadores, com clareza dos princípios do programa, como a importância de fortalecer a dimensão individual e das relações no primeiro e segundo residencial, para encorajar conversas sobre poder, representatividade e cooperação entre organizações estabelecidas e marginalizadas que atuam no campo”, sinalizou Helena.
A perspectiva é que a realidade das pessoas migrantes do Sudeste se some a reflexões sobre raça e gênero trazidas pelas participantes da edição Nordeste, ampliando a percepção no campo da escravidão contemporânea no Brasil. “Isso é muito mágico, essa abertura do programa para oferecer aos participantes algo universal sobre mudança de sistema e receber deles conteúdos que emergem da experiência prática por serem lideranças sobreviventes”, finalizou Saritta.
Trabalho escravo moderno ou contemporâneo: Freedom Fund classifica como “escravidão moderna ou contemporânea” situações de trabalho forçado, em regime de servidão e tráfico de pessoas. Ou seja, quando alguém trabalha por pouco ou nenhum salário e não pode recusar ou sair devido a ameaças, violência, coerção, abuso de poder ou engano. São situações de trabalho escravo moderno:
- Casamento forçado: doação, controle, ameaças, violência ou exploração extrema em situações de união entre pessoas;
- Tráfico humano: recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento por meio de ameaça ou uso da força para fins de exploração;
- Piores formas de trabalho infantil: inclui atividades que privam as crianças de sua infância e de seus direitos básicos, prejudicando sua saúde física e mental e dificultando seu desenvolvimento, de acordo com a Convenção da OIT Nº 182, de 1999;
- Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: uso, por um adulto, de meninas e meninos em atividades sexuais em troca de dinheiro, em situações de tráfico, turismo sexual infantil e pornografia;
- Trabalho forçado ou compulsório: é todo aquele exigido sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente, de acordo com a Convenção da OIT Nº 29, de 1930. Refere-se a situações de coação, com violência ou intimidação, ou à servidão por dívidas, à retenção de documentos ou a ameaças de denúncia às autoridades de imigração.