Como disse Mafalda, “não é o ano que tem que mudar, somos nós!”
Sempre com uma pretensa ingenuidade devido a sua pouca idade, um de meus personagens preferidíssimos dos quadrinhos, a Mafalda, me instigou a iniciar o ano pensando sobre a mudança do contexto, do outro e do “eu”. Minha experiência tem me deixado especialmente inquieta quando tenho contato com iniciativas e organizações que se propõem a transformar o “externo” sem refletir sobre sua própria mutação diante da mudança do outro e do ambiente.
Por Flora Lovato, consultora do Instituto Fonte.
Mesmo tendo lido muito Maurício de Souza durante a infância, os quadrinhos “me pegaram” no começo da década de 80, em plena juventude.
O primeiro a me fisgar foi Moebius com O Garoto do Espaço, Surfista Prateado e A Garagem Hermética. Depois, Gaiman e seuSandman, a Elektra, de Miller, as Lost Girls, de Moore, Kurtzmann e sua debochada Mad e mesmo os singelos Minduim, de Schultz ou a dupla Calvin e Haroldo, de Watterson. A Rê Bordosa, de Angeli, os Piratas, de Laerte – e, claro, toda a turma do Pasquim – além da nem sempre lembrada Naná, de Ciça, estão entre os meus bem amados brasileiros, que incluem ainda a famosa Graúna, de Henfil, e a nem tão conhecida Maria, de Henrique Magalhães.
Até pouco tempo, tinha várias revistas e edições especiais desses quadrinhos em casa. Quis compreender o que diz o poeta: “coisas são só coisas, servem só prá tropeçar; têm seu brilho no começo, mas se viro pelo avesso, são fardo para carregar”[1], e pratiquei o desapego.
Mantive uns poucos álbuns difíceis mesmo de abrir mão, como os de Mafalda, de Quino, um de meus personagens preferidíssimos, que me instiga com a pretensa ingenuidade de sua pouca idade. Sempre que vejo alguma de suas tiras na mídia, não consigo passar ilesa: leio! E, neste início de ano, um de seus cartuns foi particularmente divulgado: aquele em que Mafalda lembra que não é o ano que tem mudar, somos nós.
A inspiração
O cartum inspirou-me a escrever (e poderiam ser muitas páginas) sobre “mudança” e como mudar exige que se tenha uma imagem de futuro diferente daquela que se tem do presente. Como, para que possamos ser ou ver essa outra coisa que se quer, a mudança requer o desapego do que se foi, do que se gosta ou se gostou.
Um aspecto da mudança me inquieta em especial: quando o que queremos mudar é “o contexto”, aquilo que está “lá fora”. Vi e vejo esse desejo vivendo em todos nós nos últimos meses, diante da crise política que afeta todas as instituições e a própria democracia.
Geralmente, as organizações com as quais trabalho querem mudar “o contexto” das pessoas ou situações adversas como a violência de gênero, os direitos não garantidos de crianças, idosos, negros e outras populações desrespeitadas, a degradação ambiental, entre tantas outras injustiças sociais. Elas existem para provocar essa mudança e têm urgência em conseguir isso. Fazem o possível para alcançar uma situação nova, de direitos garantidos, equidade e justiça, orientadas pelas melhores intenções ou ideais. E, na maioria das vezes, se sentem frustradas ao verem que o esforço e recurso que investem não levam à desejada mudança (ao menos, não da forma ou no tempo planejado).
Uma dessas organizações faz um trabalho exemplar com idosos. Oferece oficinas de qualidade, de acordo com os interesses de seus frequentadores, ajuda vários a reconquistarem a autoestima, a dignidade diante de suas famílias e na sociedade por meio de atividades simples e orquestradas. Acontece que a organização quer ainda que as políticas públicas voltadas à terceira idade sejam implementadas na cidade com maior amplitude; e que seus usuários se sintam cidadãos, partícipes da gestão daquilo que lhe diz respeito, com autonomia para buscar os direitos garantidos pela legislação. Decidiu que deveria, então, fazer-se representar no conselho paritário do município designando um bom profissional para isso, que trabalhou duro. Mas não deu conta, como muitos outros não dariam.
A mudança do contexto
Demorou para que a organização – e a profissional – percebesse que as “anomalias” com as quais se embatiam não são de fato “anomalias”, senão parte intrínseca do contexto social que busca transformar. E, ao lutar tão fortemente contra o que achamos que está errado é comum nos assemelharmos e nos adaptarmos às mesmas forças que estamos querendo mudar. Por estarem “lá fora”, nos permitimos intervir para resolvê-las, lidando, ainda que inconscientemente, com os elementos ali envolvidos como coisas, peças num tabuleiro de xadrez ou objetos manipuláveis, mesmo que sejam seres vivos (outras organizações ou pessoas).
Nossa inconsciência leva-nos a esquecer o fato de que nós mesmos fazemos parte da história que queremos mudar e que, por isso, é preciso estar atento aos muitos ritmos e manifestações que acontecem, simultaneamente, na história e em nós.
Esquecemo-nos de que quando uma coisa muda, a outra também muda. O mundo muda quando mudamos e ele nos muda por meio de sua mudança.
Esquecemo-nos de que construímos nosso mundo, esse no qual vivemos, a partir de nossos pensamentos e da forma como pensamos, do projeto que desenhamos, das relações que construímos com quem convivemos e trabalhamos, do cuidado que temos com o ambiente … O que quer que seja, emerge do nosso pensamento e se constrói adquirindo as mesmas qualidades do nosso pensar. Se valorizo o sucesso escolar, o projeto que vier a construir para ajudar crianças com déficit de atenção a superarem suas dificuldades de aprendizagem privilegiará o conteúdo dado pela escola e suas métricas avaliativas. Na nossa urgência, paixão e convicção, ao partimos para mudar o mundo, encontramos nosso maior desafio e potencial ruina (re)construindo-o à nossa imagem e semelhança.
Se Mafalda aconselha a perceber que “não é o ano que precisa ser mudado, somos nós”, Vaclav Havel[2] é ainda mais radical ao afirmar que fazemos parte do que precisa ser mudado. Em seu seu discurso no Fórum Econômico Mundial, de 1992, ele disse:
O que se faz necessário é algo diferente, algo maior. A atitude do ser humano no mundo precisa mudar radicalmente. Temos que abandonar a crença arrogante de que o mundo é um mero quebra-cabeças a ser solucionado (…). Temos que libertar da esfera desse capricho privado (…) a habilidade de enxergar as coisas como os outros enxergam (…) as coisas precisam ter mais uma chance de se apresentarem sozinhas como elas são, de serem percebidas em sua individualidade (…) Devemos nos esforçar mais para entender do que explicar.
Que sejamos capazes de dar outra chance à mudança e possamos construir um mundo verdadeiramente novo em 2017, a partir de uma observação profunda das transformações do contexto, do outro e de nós mesmos.
[1] “De uns tempos prá cá”, de Chico César.
[2] Václav Havel foi o ultimo presidente da Checoslováquia e primeiro presidente da República Checa, além de escritor e dramaturgo. Defendeu a resistência não violenta (passou 5 anos preso por tais convicções) e se tornou ícone da Revolução de Veludo.
*Foto: Pixabay