Artistas do Inominável

Ana Paula P. e Chaves Giorgi (1)

Explicar o que faz um profissional de desenvolvimento social (2) parece ser um esforço contínuo para expressar o inominável. Joga-se uma âncora nas tecnologias sociais aqui, um anzol nas teorias de desenvolvimento ali, faz-se um gancho com ONGs e Fundações reconhecidas acolá…

Mas, fazer entender que nosso ofício se baseia em aprender a viver a caridade (3) para fazer caber na alma o desenvolvimento de si e do outro, e desse encontro enxergar como transformar o mundo, é um pouco mais difícil. Para simplificar, hoje eu digo que sou DO LAR. Se, afinal, minha prática cotidiana demanda o contínuo exercício da humildade para aprender a ser caridosa comigo e com os outros para fazer caber na alma o desenvolvimento dos filhos de modo que eles transformem o mundo, a essência desse fazer não é a mesma?

A verdade é que não adianta falar o que fazemos. Fazemos o que somos. Mas, só nos tornamos aquilo que escolhemos fazer, se, conscientemente, na prática de todo dia houver a intenção de abrir espaço na alma para caber nosso desenvolvimento.

Parker Palmer (4) , um autor que escreve sobre educação, nos diz algo surpreendente: a educação sempre se preocupa com o que, como e para quê ensinar, mas raramente se dedica a se perguntar sobre QUEM ensina. Allan Kaplan (5) reitera a importância da atenção redobrada sobre aqueles que se veem lutando pelo “bem” no campo social: se não nos mantivermos intencionalmente acordados, acabaremos por fortalecer os padrões e comportamentos que nos comprometemos a mudar inicialmente.

Tanto para um autor quanto para o outro, abrir espaço interno e externo para reflexão sobre nosso fazer é o que nos torna capazes de nos transformar a ponto de transformar a realidade. Nesse sentido, nossa atuação no mundo requer uma boa parte de nosso tempo dedicado a formações, escrita, leitura, oficinas e exercícios – o que tende a ser visto pelos que nos rodeiam como perda de tempo, ainda reforçado pelo fato desse investimento de tempo não trazer retorno financeiro imediato. Agora, como explicar esse afazer do profissional de desenvolvimento social demonstrando o que há de palpável permeando esse trabalho inominável?

Goethe diz que quando a natureza começa a revelar seu segredo aberto para o ser humano, este sente um desejo irresistível pelo seu mais valioso intérprete, a arte. Parece-me cada vez mais nesses 20 anos no campo social, que quando a natureza humana começa a revelar seus segredos para nós, a arte torna-se um caminho inevitável. Que arte é essa?

Fui fazer um workshop de pintura. Três dias. O primeiro, desenho. O segundo, pintura a óleo em preto e branco. No terceiro, cores. Ignorante formal em quaisquer das três partes, saí da oficina pintando sofrivelmente, mas com uma noção clara do que significa fazer arte.

Para desenhar um cavalo de madeira colocado sobre a mesa, tenho que, simultaneamente, enxerga-lo como um todo e ver também suas partes separadamente. Tenho que apreender sua forma, intuir o movimento que vem das linhas conectando as partes, ver como as linhas opostas do seu contorno se relacionam, como as linhas invisíveis de suas tangentes se cruzam, medi-lo para compreender suas diferentes proporções. E fazer a mão, obedecer à intenção. Errar é inevitável; corrigir o erro a tempo é uma escolha, diz a professora.

Quando entro em uma nova situação social, preciso fazer semelhante tarefa. Um esforço consciente de observar minuciosamente o máximo de detalhes, simultaneamente tentando enxergar o todo. Preciso buscar ver as linhas invisíveis que entrelaçam as relações, sentir o que parece estar em movimento. Mas, além de tudo isso, preciso saber que estou errando para poder corrigir a tempo os pontos cegos ou turvos de minha percepção – por meio da interação com o outro que me ajuda a ver mais, ou da atenção redobrada às minhas próprias limitações. Goethe (6) diz que o observador sempre fica confuso quando olha para a superfície de um ser vivo, pois enxergamos apenas aquilo que conhecemos. Obedecer à intenção de enxergar sem permitir que a mente julgue ou interprete é talvez a mais árdua das tarefas.

Já para pintar em preto e branco, tenho que descobrir como a luz de uma foto faz variar a infinitude de tons que eu devo recriar para “resolver”, com pelo menos quatro tons, aquilo que escolho compor. As cores puras ficam como último recurso. Criar distância com o quadro é fundamental para entender o passo seguinte. Lixar a tela facilita muito o serviço. Inicialmente, para qualquer intervenção social, há que se polir a superfície para a ação, compondo com os envolvidos uma visão compartilhada da situação em que estão inseridos. Sem esse primeiro cuidado, qualquer imagem criada conjuntamente será comprometida pelas ranhuras ignoradas. Buscar luzes e sombras, reconhecer contrastes e variações de tons para enxergar mais da situação é um esforço necessário para permitir que a imagem da situação observada fale por si. Polaridades podem ser um recurso ilustrativo, desde que não pasteurize as nuances nos conduzindo a generalizações – que são tentações para que deixemos de sustentar a instabilidade gerada por essa percepção caótica. Movimentar-se para ver de perto e de longe a mesma situação coloca as coisas em perspectiva e ajuda muito a enxergar o que vem a seguir. A complexidade inerente a toda situação social exige que sejamos prolíficos no uso de recursos para lidar com ela. “Resolver” não significa achar solução, mas decidir, a partir do que nos é trazido pelo esforço de enxergar o que temos diante de nós, como queremos lidar com o caos.

Para pintar colorido, devo organizar a minha paleta com cores básicas e criar cores para enxergar apenas o que se destaca no mundo. Outras cores podem ser convidadas para essa paleta básica, mas convidados em excesso podem atrapalhar. Há três qualidades a serem observadas em cada tom: opacidade, temperatura e intensidade. Conhecer essas qualidades de cada um dos tons requer muito manuseio aliado à percepção. Segundo a professora, uma constatação artística surpreendente para um pintor é descobrir que, para retratar as cores do mundo, temos que usar muito mais cinza do que somos capazes de enxergar no mundo. Assim, as cores servem para escolher aquilo que quero ressaltar; é do contraste que surge a vivacidade. A escolha do que priorizar pertence exclusivamente à sensibilidade e ao desejo do artista.

Ah, as cores! Essas que nascem do encontro entre luz e sombra, trazendo o infinito como possibilidade. Essas que nos permitem enxergar o mundo, pois não vemos formas, segundo Goethe, e sim luz, sombra e cor! Essas, que tiraram de Goethe o reconhecimento como cientista por ousar se contrapor a Newton em sua teoria das cores, e lhe valeram um compêndio teórico para que o fenômeno pudesse falar sobre si mesmo a partir da experiência, sem a necessidade de se recorrer a abstrações. O que elas têm a dizer sobre nosso trabalho?

Ao profissional de desenvolvimento cabe a responsabilidade criar as condições para que as pessoas comecem a experimentar manusear as qualidades humanas disponíveis a dar cor e vida à imagem de futuro que querem projetar. Onde há maior ou menor transparência naquilo que fazemos? Onde o querer se manifesta com calor? Onde a intensidade se revela em ações sustentadas por um fazer coerente? O que ainda precisamos criar da soma das possibilidades que já temos?

Apoiar para que sejam contempladas as oportunidades de expandir limites e criar o novo, o único, o original. Aprender a acolher a multiplicidade incontável presente nos espaços das relações sociais para exercitar a abertura para que o outro, o diferente, caiba em nós. Lembrando que a escolha diante dessas possibilidades sempre caberá, única e exclusivamente, aos que vivem a situação, ao autor da obra. Nós, profissionais facilitando esse processo, talvez possamos ser o cinza presente, que contribuiu, em algum momento, para que as cores escolhidas se manifestassem, revelando sua identidade única e compondo um todo integrado.

No processo de pintar, rigor, ordem e disciplina eram demandados e com eles veio uma descoberta surpreendente: a liberdade. A liberdade surgia quando a compreensão virava experimento e experimento virava aprendizado. Mas entre cada etapa desse processo era necessária uma pausa de vazio, de ignorância, que me levava ao encontro de mim mesma, com minhas limitações e potenciais. Estar nesses espaços requisita audácia, coragem, paciência e uma prática consistente: só a experiência transforma.

A professora (7) é um espelho vivo dessas qualidades exigidas. Dona de uma prática profunda, trabalhada todos os dias. Ela partilha com generosidade seus aprendizados, facilitando o acesso que nos conduz em nossa própria direção. Não há dogma, mas ofertas de segredos abertos aos que aceitam praticar o ofício de modo estruturado, reflexivo, esforçado.

Senti que ser profissional de desenvolvimento social é essa arte de ser o seu ofício todos os dias para, a cada dia, refazer essa trajetória de desenhar e pintar a realidade, vivendo cada um dos desafios propostos por esses afazeres, acolhendo o vazio da ignorância para conquistar a liberdade. Goethe fala que a liberdade e a vida são dádivas dadas apenas àqueles que se dispõem a conquista-las novamente a cada dia. Será esse o produto de nossa arte? Ele também diz que a arte é mediadora do inominável. Se estivermos fazendo arte, o inominável será expresso!

Em essência, ser facilitador de desenvolvimento social é ceder ao desejo irresistível de revelar os segredos abertos da natureza humana e escolher conquistar a cada dia a dádiva da liberdade por meio da arte de mediar o inominável. Simples assim, não lhe parece?

Este artigo integra o Relatório de Gestão 2015-2016, um importante instrumento de reflexão e aprendizagem do Instituto Fonte. Para ler outros textos ou baixar o relatório, clique aqui.
(1) Formada em Letras pela USP, com mestrado em Desenvolvimento Sustentável e Treinamento (School for International Training, EUA) e Doutorado em Educação (UNESP), trabalha com Desenvolvimento Social desde 1996. Foi consultora por dez anos, trabalhando com ONGs, fundações, escolas agrícolas e programas de formação.  Fundou e coordenou um programa de educação complementar para crianças em sua comunidade, onde também foi presidente do CMDCA. Escreveu um livro sobre um programa de educação rural realizado pelo Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (Retrato Falado da Alternância) e um guia, Elaboração Participativa de Projetos, publicado como parte de um programa da Fundação VITAE.  Traduziu o livro de Allan Kaplan, Artistas do Invisível. Hoje atua como facilitadora de processos. Mora na cidade de Oriente, SP. Contato: anapaula.chavesg@gmail.com
(2) “Profissional de Desenvolvimento Social” foi um termo cunhado pelos consultores do Instituto Fonte ao traduzirmos para o português o livro Artistas do Desenvolvimento, de Allan Kaplan e lançarmos o PROFIDES, Programa de Formação de Profissionais de Desenvolvimento Social. O termo que Kaplan usa para designar esse profissional no texto original é “development practitioner”.
(3) A origem grega da palavra caridade, “CHARIS” significa “graça”. Graça tem vários sentidos (favor, dom, beleza, nome), mas sustentando na origem do termo, tanto no grego como no latim “CARITAS”, está o amor incondicional pelo outro, que começa por si mesmo.
(4) No livro The Courage to Teach.
(5) Ativismo Delicado, texto disponível no site do Instituto Fonte.
(6) Goethe on Art, de John Gage (1980).
(7) Suzana Schlemm – suzannaschlemm.com