Por que não eu?

Por Tião Guerra*

Cedo. Calor. Rio de Janeiro, 16, Março, 2018.

Acordei com o sol na cara. No canto do quarto um monte de roupas suadas do velório de Marielle a 40 graus. Estou salgado e nu. Sento na cama, bebo água e, mesmo antes dos trens do pensamento pegarem seus trilhos, um grito, uma pergunta incomoda. A princípio, carregada de culpa, ácida, chega como um bofetão na cara ainda amassada: Por que não eu?

Diabos de pergunta estúpida! As respostas óbvias cavalgam na frente: sou homem branco, divorciado, professor público aposentado, trabalhando com causas sociais a vida toda. Até que se prove o contrário, um cara legal. Mas não era eu quem estava naquela noite do 14 de março, dentro do carro fatal.

Onde eu estava? Por quais caminhos minhas escolhas tinham me levado? Por que não fui eu a pessoa assassinada? Que bolha de segurança, a altos custos, havia criado em torno de mim para não ser a pessoa que estava lá?

A pergunta feita por Marielle há uma semana atrás foi claramente por ela respondida: Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?

Para mim ela responde: Todos nós devemos precisar morrer! Todos nós devemos estar dispostos e disponíveis a morrer, junto com eles, no lugar delas, tantas, tantos.

Mas não é a morte que nos interessa! A morte, o assassinato, são tão somente a culminância de um trajeto. É o trajeto que me importa. O meu trajeto. O seu trajeto. Nossos trajetos seguros, bem intencionados e quase insuspeitos.

Porque não eu? Porque não você? É pergunta que carece ser olhada. O pranto, o luto, a ausência, podem ser somente armadilhas autocentradas, se nossos trajetos, o meu e o seu, não nos conduzirem ao oferecimento radical de nós mesmos.

Presente?


Consultor de processos de desenvolvimento pelo Instituto Fonte e fundador da Associação Crianças do Vale de Luz. Desde 1979 trabalha em instituições sociais, em especial as que atuam no âmbito da infância e juventude, com gestão e desenvolvimento organizacional e apoiando o fortalecimento das pessoas nelas envolvidas. Atua como coordenador do Programa Mais Educação numa escola pública em Nova Friburgo, tendo sido diretor do Instituto de Educação de Nova Friburgo, da Escola Comunitária Municipal do Vale de Luz e coordenador regional (Região Serrana do Rio de Janeiro) da FIA/RJ. Realizou estágios no campo educacional e social na França, Suíça, África do Sul e Moçambique. É graduado em Pedagogia, com especializações em Pedagogia Waldorf e Pedagogia Social. É músico e contador de histórias; pratica e acredita na arte como instrumento de trabalho e de desenvolvimento pessoal e social. De Nova Friburgo (RJ), vive entre Nova Friburgo, Rio de Janeiro e São Paulo. Contato: tiao@institutofonte.org.br