Facilitação: a arte de intervir em organismos sociais vivos

Facilitação é o assunto de mais uma entrevista da série #fonte20anos*. Dessa vez, conversamos com o consultor e facilitador de processos Arnaldo Motta, que contou como essa prática foi se desenhando ao longo do percurso do Instituto Fonte

Psicólogo de formação, com atuação no campo social desde o final da década de 70. No início dos 80, Arnaldo Motta participou, de forma muito ativa, da implementação de novas políticas na área da saúde mental do primeiro governo de São Paulo eleito diretamente (André Franco Montoro, 1983-1987), que, em sua avaliação, “representou uma grande guinada na forma de abordar as pessoas com transtornos mentais”. Atuou também na criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de São Paulo e das propostas de tratamento ambulatorial fora do hospital, dentro da comunidade e junto com a família.

Devido à necessidade de novos dispositivos capazes de auxiliar esse formato de atenção, montamos a Associação Franco Basaglia (foi um psiquiatra italiano que inspirou o processo de reformulação da atenção psiquiátrica no Brasil), uma organização voltada para o desenvolvimento de iniciativas de socialização dos usuários do CAPs, com atividades e intervenções nas comunidades.  Ao criar uma organização social, começamos a sentir a necessidade de investir na estruturação e gestão dessa organização, para potencializar sua atividade-fim.

Capa da revista do Projeto DIES.

Nessa época, como representante da Associação, Arnaldo Motta passa a participar do Projeto Dies: Desenvolvimento Institucional de Entidades Sociais, uma iniciativa da Fundação Kellogg e Fundação Orsa, que reunia cerca de de 25 organizações sociais que receberiam uma capacitação nas diversas áreas de gestão. Paralelamente, estava se formando o coletivo que criaria o Instituto Fonte. “E eu fui convidado a participar desse grupo e a integrar a equipe do Projeto Gestão. E assim foi minha chegada”, lembra Arnaldo.

A partir daqui, o psicólogo e consultor, que esteve presente nos 20 anos da trajetória do Instituto Fonte, passa a nos contar, com suas próprias palavras, sobre a facilitação de processos, uma prática central na atuação dessa organização.

Boa leitura! 


* A entrevista de Arnaldo Motta é parte da série comemorativa #fonte20anos, que trata de assuntos centrais na existência e na trajetória do Instituto Fonte, organização que ocupa um importante lugar para a reflexão e fortalecimento das OSCs no Brasil. 


Facilitação do Seminário UNESCO, em Brasília, Abril de 2013.

 

O movimento ininterrupto das organizações sociais

No Instituto Fonte, nós entendemos que os grupos e organizações são organismos vivos, não coisas estáticas. Estão em transformação o tempo todo. Uma imagem boa para pensar sobre isso é o próprio percurso de um rio. Eventualmente, a água pode ter o seu caminho interrompido, encontrar obstáculos, ter momentos de cheia e seca.

O processo social tem esse fluxo. Uma organização tem o seu objetivo e foi criada para percorrer seu trajeto, dialogando permanentemente com o contexto no qual está inserida. Ela tem um sentido, assim como a água do rio.

Em alguns momentos, esse percurso corre mais liso, mais solto, as atividades caminham bem, sem muitos problemas. Em outros, esse processo apresenta crise, tem entupimentos, conflitos, divisores, divergências, que são partes naturais do caminho de qualquer organismo. A facilitação tem a ver com intervenções que buscam justamente facilitar o desenrolar desses processos.

Registro de atividade de facilitação de processo. OXFAM, Brasília, Abril de 2014.

Obviamente, uma ação como essa implica certo nível de complexidade. Assim como as instituições, o contexto também muda. A sociedade pede e propõe novos desafios, constrói outras respostas. E toda organização interage com essa diversidade de acontecimentos, num determinado tempo e um lugar, e dialoga com as forças que agem no campo no qual ela própria está presente e atuando.

Em alguns momentos, aquilo que parecia claro, deixa de ser. Interna e externamente, as situações se transformam, as pessoas mudam, a equipe cresce, alguns vão embora, o dinheiro diminui… Então, se alguma organização consegue ter clareza do seu contexto, do seu trabalho, da sua atuação, precisa entender que essa condição não é eterna.

Quando uma organização se vê provocada, tensionada, desafiada no sentido de que as respostas que ela tinha já não servem mais, ou a forma como se organizou já não responde às demandas colocadas, é necessário construir novas ela precisa buscar novas saídas. Como é possível imaginar, esse movimento traz algumas crises.

 

Ajudar a enxergar o que está acontecendo

Facilitar é tornar mais fácil algo que está se debatendo para achar o seu caminho. É dar voz para algo com dificuldade para se expressar, que ainda não encontrou o curso adequado. É abrir espaço para aquilo que está incipiente, incrustado ou reprimido desabroche, apareça e ganhe voz. Abrir espaço para a expressão.

É complicado, ao mesmo tempo em que desenvolve o seu trabalho, olhar para a organização e pensar sobre ela com certo distanciamento, identificando as questões presentes. O facilitador, na verdade, cuida dessa função. Primeiro, para ajudar a entender o que está acontecendo. Nesse sentido, o olhar de fora é muito privilegiado, porque não tem determinadas amarras ou o mesmo nível de envolvimento que as pessoas da equipe. Isso oferece mais liberdade ao olhar. Vale lembrar que o trabalho social é sempre um trabalho muito envolvente. Grande parte das pessoas é tocada pessoalmente. Esse componente afetivo permanece na maneira como as organizações e as suas equipes lidam com as suas crises.

Arnaldo Motta, na consultoria para o Ministério da Cultura. Brasília, Agosto de 2008.

O facilitador tem um olhar distanciado da organização, o que é útil para uma equipe mergulhada no seu cotidiano. Compartilhar a sua realidade com alguém que está vindo de fora pode arejar e a intervenção auxiliar na autorreflexão.

Para o Instituto Fonte, é importante olhar para organizações como seres vivos, formadas por pessoas que precisam ser levadas em consideração, devem ser escutadas e percebidas como agentes que interferem no processo. Contemplar as pessoas é um diferencial muito importante do nosso trabalho. Isso, hoje, pode ser óbvio, mas tempos atrás não era tão natural. Pelo contrário.

 

Um “jeito” de ser e fazer 

O Projeto Dies, que era coordenado por profissionais que também criariam o Instituto Fonte na sequência, já tinha um ritmo diferente em suas formações. De tempos em tempos a gente se levantava, com uma interrupção, um lanchinho, um espreguiçar, um movimento corporal… Havia um clima de cuidado com os sentimentos, espaço para ser ouvido, para discussões. Por fim, as expressões criativas, não só de formas verbais, mas também musicais, plásticas e corporais eram constantes na abordagem.

O Instituto Fonte tem uma referência para o significado da facilitação e um jeito de facilitar. É reconhecido, elogiado e criticado por isso.

Grupo do Projeto Gestão, no Centro Paulus. Inspirado no Projeto Dies, foi o início das ações do Instituto Fonte.

Esse modo de trabalhar tem a ver com as referências que usamos. As duas primeiras, do meu ponto de vista, são a antroposofia e a pedagogia social, centrais para desenvolver a percepção sobre seres em movimento, em processo, vivos.

Trabalhar com diferentes dimensões do ser humano me chamou muita atenção e foi a primeira vez que vi esse formato aplicado no trabalho social. Até então, tínhamos como referência o perfil da militância, muito cabeça, racional, focada nos estudos. A relação com o corpo e com a criatividade ficava de fora e arcávamos com todo o prejuízo que essa escolha causava.

A antroposofia traz esse cuidado dos detalhes, seja de uma conversa ou uma reunião. Nada é feito de qualquer jeito. Uma escuta tem preparação, atitude, provocação. A facilitação do Instituto Fonte tem o cuidado como uma de suas marcas. Cada processo é olhado nos seus detalhes, desde a música, o espaço, a disposição das cadeiras, do material necessário, o encadeamento entre as conversas, a relação entre temas, o momento de atividade corporal. Esse esmero é muito característico e tem essa conexão com a antroposofia e a pedagogia social.

Eu também trago minhas referências da Psicologia. Carl Gustav Jung elaborou alguns instrumentos muito potentes para o trabalho de facilitação, que exige uma escuta que não é apenas auditiva, mas é o que chamamos de uma escuta ampliada, capaz de se colocar inteiramente, como um órgão perceptivo do que está se passando no contexto que você tá querendo desvendar, ler e entender.

A psicologia analítica vai trazer uma série de dispositivos, como o conceito de transferência, no qual muitas coisas que você vivência numa interação diz respeito ao que está acontecendo na situação, como se você fosse uma caixa de ressonância, amplificando questões presentes no processo. A partir dessa lógica, é possível usar aquilo que está sentindo, pensando, fantasiando. Poder se colocar nesse lugar é um instrumento muito poderoso para o processo de facilitação, porque permite que você alcance sutilezas do fenômeno que não teria acesso de outra forma.

Outro conceito importante, advindo da psicologia analítica, é o de símbolo, uma leitura ampliada das situações, na qual as coisas “são o que são”, mas também “são mais do que são”. Uma imagem feita durante uma conversa pode representar muito do que está se passando naquela situação e ampliar o universo de percepções objetivas e subjetivas que merecem ser contempladas, respeitadas e consideradas quando você vai fazer uma leitura de processo dentro de um trabalho de facilitação.

Assim como a pedagogia social cuida da maneira de estar, da construção dos lugares de intervenção, a psicologia vai zelar também pela forma como se dão as interações e conversas. Tornam-se dois campos complementares, nesse sentido.

Só para fechar essa parte do cuidado, tem um terceiro elemento, que chega mais tarde e vai potencializar bastante o nosso trabalho, que é a observação. E isso acontece quando entramos em contato com a fenomenologia goetheana, que aprofunda conosco a prática social reflexiva (que faz parte do corpo da Antroposofia, uma vez que Rudolf Steiner foi o organizador de todo o material que Goethe produziu).

Allan Kaplan, quando aprofunda a teoria goetheana com a equipe do Instituto Fonte, impacta e legitima muito do que já fazíamos. Ele, pessoalmente, passa a ser decisivo em nossa formação como profissionais de desenvolvimento. Logicamente, a facilitação que nasceu há 20 anos no Fonte é hoje muito diferente, uma vez que também somos esse organismo vivo, que incorpora elementos do mundo e do que nele nos provoca, composto por pessoas, que trazem, absorvem e transformam essa prática.

Durante o retiro do Instituto Fonte, momento de estudos e aprendizagem coletiva. Centro Paulus, Setembro de 2010.

Nosso grupo de facilitadores sempre foi muito curioso, estudioso, preocupado com a própria aprendizagem, outra característica marcante dentro da nossa própria perspectiva de facilitação. A aprendizagem diz muito da nossa postura e acaba sendo decisiva na construção desse entendimento líquido, que precisa mudar com o tempo, com as influências e com as mudanças que vivenciamos no processo social. Quando facilitamos, aprendemos também.

Por isso fomos gradativamente incorporando outros autores e teorias, como o Christopher Schiefer, depois o Edgar Schein, que vem da consultoria corporativa com a perspectiva de processo e sistematiza o conhecimento de um jeito muito interessante. O próprio Jung ganha espaço na medida em que aprofundamos nossos estudos. Peter Drucker e outros nomes aparecem no cenário, como Fritjof Capra, com O tao da física e O ponto de mutação, que vai falar dos fenômenos da complexidade e das teorias sistêmicas.

 

No trajeto percorrido, o que está por vir

Nos seus 20 anos de existência, acho que o Instituto Fonte publicou pouco, escreveu pouco sobre si, sobre sua prática. Publicou muito de outros autores, fizemos traduções importantes para o campo do desenvolvimento social, mas não materiais nossos, de nossa autoria. Temos alguns artigos, relatórios, publicações das quais participamos. Tudo muito esporádico. Mas não desenvolvemos uma prática de estudar e escrever sobre o conhecimento nascido.

Arnaldo facilitando uma reunião, atividade da Consultoria para a UNAS – União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. São Paulo, Setembro de 2015.

Pensando para o futuro, precisamos atuar com a sistematização da aprendizagem acumulada, isto é, escrever sobre o que é tão óbvio, mas ao mesmo tempo deve ser nominado justamente para que o óbvio possa ser dito. Acho que esse é um desafio. Estamos trabalhando em uma primeira publicação com esse viés.

Outro ponto é que tivemos um lugar organizador aqui no Brasil dos conceitos em torno do profissional de desenvolvimento e acho que toda essa crise, do ponto de vista institucional e conjuntural, trazem muitas questões. As pessoas estão espalhadas. Manter algum nível de notícia, de conexão e de relacionamento dessa rede, de pensar em como manter esses canais de trocas, não mais de uma instituição, mas de algo mais aberto e solto, talvez configure uma outra pauta institucional.