Educação vigorosa: os caminhos iniciais de um conceito inovador

Tião Guerra. Consultor, facilitador, educador, amador, sonhador, cuidador, cantor, compositor… Adjetivá-lo é uma tarefa difícil, pois qualquer definição, dependendo do contexto, pode tornar-se frágil e limitadora do alcance de suas asas invisíveis. Mas sua autodescrição destaca, para além daquilo que já foi apontado antes, seu gosto por caminhar e suas aptidões como músico, leitor, escritor (https://cartasdofundo.wixsite.com/site) e como pai de seis filhos maravilhosos.

Como o sobrenome indica, aos seus 58 anos de vida Tião luta suas próprias batalhas. Acredita no contato consigo mesmo, com a natureza, com a arte e com o outro como estilo de vida, abordagem de trabalho e de desenvolvimento pessoal e social. Após 39 anos de atuação como educador, desenvolveu um olhar muito dinâmico, crítico e realista para as situações que envolvem a educação de crianças e jovens, fruto de uma trajetória multifacetada e inquieta, iniciada em 1979, no Estado do Rio de Janeiro, e que ultrapassou os muros da escola pública e alcançou movimentos e organizações sociais de várias localidades e naturezas, incluindo aquelas voltadas para a Pedagogia Waldorf.

Tião soma muitas atividades em seu currículo: fundou o Instituto de Educação de Nova Friburgo em 1985, e foi o diretor da escola de aplicação do mesmo. Fundou a Associação Crianças do Vale de Luz em 1988, mantenedora de duas Escolas Waldorf público-comunitárias e um Centro de Formação de Professores Waldorf, onde desenvolveu habilidades de gestão organizacional e de apoio ao desenvolvimento de pessoas e de organizações sociais. Em 1996, começou a atuar como consultor de processos de desenvolvimento social. Foi coordenador Regional (Região Serrana do Rio de Janeiro) da FIA/RJ ‐ Fundação para Infância e Adolescência, em 2002. Realizou estágios na área educacional na França, Suíça e África do Sul. É graduado em pedagogia, com especializações em Pedagogia Waldorf e Pedagogia Social. De 2007 a 2011, prestou assessoria parlamentar (ALERJ) na área de projetos de desenvolvimento. Em 2017, compartilhou seu tempo profissional com grupos muito interessantes: Coordenador do projeto Fortalecendo a Resiliência em Comunidades da Região Serrana do Rio de Janeiro (C&A Foundation e Save the Children); Jardim Escola Michaelis/RJ; Departamento Nacional do SESC, Área de Desenvolvimento Comunitário; Avo – Meaningful Branding; JLT Seguros; UNICEF/RJ. É docente na graduação “Pedagogia da Liberdade” e consultor eventual em diversas potentes iniciativas socioculturais por aí… Contato: tiao@institutofonte.org.br

Com base nesse caminho, influências e inúmeras perguntas ainda sem respostas, Tião tem aperfeiçoado um conceito próprio que intitulou “educação vigorosa”.

E esse é o foco deste texto, fruto de uma longa conversa-aula, que tratou desde a origem e inquietações presentes no conceito, como também se preocupou em apontar qual é o caminho pedagógico para o qual procura olhar a educação vigorosa.


E, apenas lembrando, Tião Guerra será um dos facilitadores do Profides X, ao lado de Flora Lovato. Já fez sua inscrição?


A origem do termo “educação vigorosa”

Tem a ver com uma trajetória de 37 anos dentro de escola, tanto privada como públicas, estas últimas, em áreas periféricas onde o tema da violência ou da inadequação, ou a falta de sentido do espaço escolar para uma boa parte das crianças e dos jovens é um tema muito recorrente. Sobretudo para os jovens. Como olhar para a instituição escola pública, que é a maior instituição pública desse país, onde mais circulam cidadãos, como um espaço que pudesse ser interessante, desejável, estimulante?

Essas inquietações surgiram paralelamente ao meu convívio com a Pedagogia Waldorf, que tem na sua base o princípio associativo, ou seja, a escola não é do Estado, não é de um dono, de um proprietário, mas a escola é gerida, construída por uma tríade composta os professores, pais e comunidade.

A aposta da Pedagogia Waldorf, de que a relação dos adultos é aquilo que vai gerar a estrutura ou o leito por onde vai correr o “rio escola”, por onde vai correr o “rio crianças” em processo educativo, sempre foi pra mim um grande atrativo dessa abordagem pedagógica. Porém, ao longo dos anos fui percebendo que esse é um grande tesouro repleto de grandes desafios.

O desafio da vida em comunidade

A vida associativa é um grande desafio na contemporaneidade. A vida associativa, de colaboração, de criar consensos, de haver dissensos, de discordar, de estabelecer mandatos, de diferenciar alçadas, todos esses processos que são centrais na vida social estão muito fora de moda.

Não é algo que está sendo estimulado na esquina, ou seja, vamos colaborar, vamos organizar bons encontros para produzir metas definidas no bairro, no condomínio, na cidade, enfim… E isso não é culpa das pessoas que estão envolvidas no processo.

Pra mim, nasce essa constatação de que essa fragilidade da presença dos adultos, tanto nas escolas públicas como na Escola Waldorf, que não são públicas, são comunitárias e associativas, era um fenômeno mais profundo do que a inabilidade daquele grupo de adultos, ou daquela comunidade que estava em torno daquela da escola pública. Mas que a gente deveria olhar pra isso com mais cuidado na conjuntura moderna, na qual o ideal de adulto bem sucedido é um adulto privatizado, que tem seu plano de saúde, que tem a chave da sua casa, que está dentro do condomínio, que se locomove no seu carro, que é “independente”. Isso tudo é tido como sucesso.

Essa “pulga atrás da minha orelha” foi crescendo e chegou uma hora que uma pergunta do Steiner, em um livro chamado “A questão social como questão pedagógica” fez muito sentido. Logo na abertura ele diz: “como nós adultos devemos nos comportar diante das crianças se quisermos que elas mergulhem com entusiasmo na vida cultural, jurídica e econômica?” Eu me agarrei nessa pergunta e falei “é com essa que eu vou”.

Uma escola sem crianças no centro?

Começa assim a nascer esse conceito de uma escola que tem crianças e jovens, mas que o centro dessa escola não são as crianças e os jovens. É uma ideia contra intuitiva, um rompimento. As pessoas não dizem isso, as crianças sempre foram o centro da escola. E eu começo a dizer que o centro da escola são os adultos e a sua vida social, seja uma escola pública ou Waldorf, de que essa escola vai ser tão mais interessante, estimulante, significativa quanto mais qualificada for a vida social dos adultos que estão em torno dessa escola?

Na medida em que a vida dos adultos, a vida de colaboração, associativa, se qualifica e se torna entusiasmante para os adultos, as crianças e os jovens vão se espelhando e conforme vão ganhando idade, iniciam sua própria participação nessa estrutura, a partir desse comportamento.

A escola é um lugar onde os adultos são referências. Eles não são faladores de mundos românticos, idealizados, mas eles são uma referência prática do quanto é bom e dilemático ser adulto, no sentido de que não é harmônico, mas no sentido de que a vida adulta é uma vida interessante. Ela tem uma ludicidade dramática. Crianças e jovens, quando olham para esses adultos, pensam, sentem “nossa, é bom amadurecer, é bom ser adulto. É bom caminhar para meu próximo estado”.

Eu tenho sido muito chamado para trabalhar com Escolas Waldorf, fortalecer a vida associativa. Eu tenho feito o que disse até agora, lembrar as pessoas de que se a gente “brinca bem como adulto”, isso é a escola. A relação entre os adultos é o que vai fazer esse fluxo. Vivenciar situações reais que vão representar um currículo vigoroso. Que é um currículo de comportamento adulto, maduro.

O fluxo da força: da violência à virtude

Tião e educadoras de Petrópolis durante o lançamento do projeto Fortalecendo a Resiliência

Há uns seis meses, uma universidade me convidou para falar sobre educação não-violenta. À medida que iam passando os dias, crescia uma questão em mim: se a gente tirasse a violência da educação ela seria morta, uma vez eu o componente violência é um componente da vida. Se você tira esse componente da vida, uma outra polaridade desaparece também.

Fui pesquisar sobre a origem etimológica da palavra violência e descobri que o prefixo vis, que nas línguas neolatinas se transformou em vir, quer dizer força da vida. Então, a etimologia de violência é força em excesso.

Se há uma força em excesso, deve ter uma força adequada, pensei. Virtude quer dizer força adequada. A etimologia de virtude é: a força adequada para cada situação. Não é uma força adequada para tudo, quer dizer a força adequada para cada situação. E violência é a força em excesso para qualquer situação.

Por exemplo, um silêncio excessivo em uma situação determinada pode ser um ato de violência. Violência não caracteriza apenas o tapa, a sacudida, o palavrão. A violência pode ser qualquer comportamento, qualquer força em excesso em uma situação determinada. O que é muito interessante, pois se há um excesso de força e uma força adequada, deve ter uma dança entre as duas. Ou seja, deve haver um movimento que oscila entre o excesso e a adequação. E essa palavra é o vigor. O vigor é a prática da força, sem adjetivos.

Quando eu fui dar a aula, eu trabalhei todo esse conteúdo, para o escândalo inicial das pessoas que estavam por lá. Depois criou um entusiasmo e uma compreensão. Meu esforço é levantar a questão sobre o que pode criar condições para uma educação vigorosa, uma educação onde os adultos estejam atentos a prática continua da força, pois estamos continuamente sendo excessivos em nossa prática e estamos continuamente quebrando o excesso de força, transformando violência em virtude.

Estamos sempre oscilando entre virtude e violência. A questão é que se a gente presta atenção nessa oscilação, a gente vai se tornando uma pessoa vigorosa, na prática, alguém que está prestando atenção em suas mancadas e nas suas coisas incríveis. E se a gente vai nessa direção, a gente tem mais condições de desenvolver coletivos educadores vigorosos como, por exemplo, nas escolas, ou em espaços informais, associações, pois não serão excessivamente violentos, nem divinamente virtuosos. Mas serão instituições fortes e vigorosas.

Estaremos atentos ao fenômeno da prática da força para, que ele fale pra você. Nesse sentido, não chegarei a tratar de conteúdos, de formatos. Estou lidando com os sujeitos, com o comportamento dos sujeitos responsáveis por essas organizações, instituições.

A transformação do paradigma: significados para o processo educativo

Atividade com pais e educadores.

Como eu trabalho isso? Imaginemos uma linha vermelha que vem do passado e que posiciona o processo educativo no tripé antroposófico do pensar, sentir e querer.

  • Pensar: você vai aprender coisas, conceitos, memorizar conteúdos, por para dentro informações. Isso vai te formar.
  • Sentir: trata de um lugar político, das relações sociais. O sujeito será formado para manter-se: Custe o que custar. Terá um emprego, salário, comida…
  • Querer: no nível mais do querer, a escola vai nos ajudar para que a gente se porte. Educação que nos educa para algo: aqui é assim que eu devo me portar para ser aceito. Assim, terei retorno, recompensas afetivas.

A virada, para transmutar esses três:

  1. aprender deixar de ser central e compreender ganha espaço. Não basta eu saber 10 coisas, mas é importante que eu saiba relaciona-las entre si. E fazer outras composições entre elas. Criar compreensão passa a ser mais sofisticado, mais vigoroso como resultado no educando, passa a ser mais desejável, pois é um passo além do aprender. Ou seja, além de saber coisas, eu consigo relacionar coisas, e quando eu relaciono, eu transformo esses conteúdos;
  2. O segundo paradigma transpõe o manter-se e chega ao relacionar-se. Eu não vou me manter a qualquer custo, mas eu me mantenho em relação a…, me mantenho em relação. Por exemplo, me mantenho em relação ao meio ambiente. Entendo minha manutenção em relação ao outro, sem custar a manutenção do outro.
  3. E pra terminar, o portar-se quebra o paradigma para comportar-se. Eu faço uma leitura desse ambiente, eu aprendo as regras, entendo como tenho benefícios, mas eu contenho a mim mesmo nesse ambiente e entendo que é possível transforma-lo, e não apenas adaptar-me a ele. Então, é uma leitura das regras do ambiente, mas também uma transformação, pois eu também estou presente. Não sou apenas alguém a ser ajustado, mas assumo que meu desajuste é proveitoso para esse ambiente e que sou capaz de propor uma nova situação.

Um sucesso educativo é gerar criaturas que chegam nos ambientes, compreendem e os transformam. Pois se levam ao ambiente e propõem uma interferência. Essa transformação dos paradigmas do aprender, manter-se, porta-se para o compreender, relacionar-se, comporta-se é o resultado de uma educação vigorosa.