O que é que uma escuta tem?

Por Saritta Falcão Brito*

O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo”, disse Wemerson, coordenador de projetos, do Giral (PE), uma das 10 organizações[1] que participaram do projeto Escuta Nordeste (NE), do Instituto Fonte (IF), citando um trecho do texto Vista Cansada[2], de Otto Lara Resende. E continuou A retina cansa de observar a mesma coisa e vocês mostraram para a gente o que estavam vendo”.

A escuta como uma faculdade que vê, que revela, é uma das habilidades sociais mais praticadas no jeito do Instituto Fonte trabalhar com o campo social. Ela é base nas nossas atividades de formação e consultoria. Por meio dela, apreendemos as relações entre as partes e o todo de uma organização, de um grupo. Um exercício que exige muita disciplina interna para se manter presente e aberto ao conjunto de fatos, sentimentos e reflexões trazidas sob diferentes olhares ao reunir, por exemplo, a equipe gestora de uma organização “É fundamental termos tempo para fazer esse trabalho da escuta, dos grupos da comunidade. Sinto falta de que as pessoas da comunidade sejam protagonistas da história”, disse Andrea, da Associação Quilombola de Porteiras (CE).

Diante do emaranhado de mudanças que vimos assistindo há pouco mais de um ano no cenário político-institucional do país, do seu impacto na desconstrução de programas sociais e retrocesso na conquista de direitos, nos pareceu importante abrir um ambiente de “ouvidoria Fonte”. Algo que nos ajudasse e as organizações a ver mais sobre esse momento e seus desdobramentos. Algo que apresentasse aos atores sociais de Pernambuco e do Ceará o diferencial desse jeito IF de atuar. Por quê esses dois estados? Primeiro, o instituto está fisicamente mais distante desses locais, tendo sua sede em São Paulo. Depois, o Escuta NE foi proposto por mim, Helena Rondon e Suzany Costa, as consultoras Fonte “do Nordeste”, em resposta ao edital interno do IF. Estávamos muito “afiadas” na habilidade da escuta. Além da bagagem pessoal de cada uma, havíamos acabado a Pós-graduação Prática Social Reflexiva onde trabalhamos intensamente a escuta e outras habilidades de percepção importantes na “lida” com processo social “Fiquei muito impressionada com o improviso (leitura de cenários), foi forte e muito positivo”, disse Wania, do IDESQ (CE).

Um desafiador processo de inscrição, entrevista e seleção nos aproximou das organizações sociais que desejavam ser escutadas por nós. A preparação que antecedeu as quatro horas de escuta em cada uma delas, foi permeada de conversas de planejamento onde identificamos diferentes caminhos para trabalhar com os grupos gestores dessas organizações. Os métodos do Ciclo Ação-Aprendizagem, de Reg Revens e da Investigação Apreciativa, de David L. Cooperrider e Diana Whitney, fizeram a diferença na forma como as equipes mergulharam com coragem e transparência nas suas questões-problemas. Também a disciplina para silenciar nossos diálogos internos sobre o que nos era conhecido a respeito de cada organização, garantiu um estado de “esvaziamento de (pré) conceitos” capaz de criar presença e interesse ativo nas trocas. Assim, começamos um delicado movimento de escuta organizacional.

Por meio da socialização de percepções pessoais sobre fatos objetivos, as questões foram se manifestando em cada grupo com singularidade e nitidez, compondo um mosaico único de forças e padrões. Um intervalo de 20 a 30 minutos marcava o momento em que eu e Helena, minha dupla na facilitação em Pernambuco, nos recolhemos para trocar impressões sobre o que foi escutado e o que isso estava revelando daquele processo. Depois desse intervalo preparamos o grupo para escutar nossa conversa, aquilo que Wania, do IDESQ, chamou de “improviso”. Com muita responsabilidade e rigor conversamos sobre nossa leitura e o que estávamos “vendo” daquela situação, citando falas, compreensões, dúvidas, hipóteses, como se estivéssemos a sós na sala do IF “Precisava ouvir o outro sem ser pela boca do outro; já me percebo diferente de quando entrei”, disse Anne, da Escola Pernambucana de Circo (PE), “Foi objetivo e produtivo. Um trabalho deste faz com que a gente escute o que precisa e veja o que nem sempre se consegue ver”, avaliou Sirley, do Instituto Papai (PE).

Esse jeito de fazer trouxe aprendizagens, novas compreensões e significados para as equipes  “Assumimos as falhas que é uma tarefa muito difícil para o ser humano. O que podemos mudar a partir das nossas falhas? No mínimo isso valeu, a gente nunca parou para olhar dessa forma, a gente passava batido, estamos vendo uma outra forma de olhar sem caçar culpadas”, avaliou Ilma, uma das fundadoras do CEPOMA (PE); “Esse momento revelou pontos que estavam adormecidos, que não dava a devida atenção. Temos que saber o porquê não podemos gastar ou devemos cortar”,  disse Lucinalda, do CEACRI (CE). Ao ajudar as organizações a enxergarem mais, o projeto Escuta NE também nos ajudou a perceber quais temáticas institucionais estão vivas nessa pequena mostra de organizações. Uma delas foi o “vazio programático” em função da implantação da política pública das Escolas de Referência – as escolas de tempo integral. Com percepções diferentes sobre se este fato é ou não uma conquista, tanto o Giral (PE) que atua com a juventude rural, quanto o Em Cena Arte e Cidadania[3](PE) que atua com a juventude urbana, concordam que o foco na aprovação o vestibular tem gerado resultados, há também o sentimento de carência de outros aspectos da aprendizagem “Tenho críticas a prática das escolas de referência. Embora tenha mais alunos aprovados no vestibular, eles nos procuram para trabalhar com música e voluntariado “, contou Everaldo, um dos fundadores do Giral.

Outra temática que emergiu em quatro instituições escutadas foi o processo sucessório de fundadores “Como eu fundei e idealizei, estou querendo passar a bola cada vez mais. Concordo com as duas falas, precisamos saber diferenciar processos pessoais dos profissionais”, nos contou Eliane, da AMUNAM (PE). Na na fala de Sirley, do Instituto Papai (PE), ele fala “A instituição é muito maior do que os seus fundadores. O que a organização leva adiante é o seu projeto. A equipe reconhece a importância dos seus fundadores e o legado da organização e sua atuação política. O que mantém a instituição é o seu reconhecimento político. Existe um simbólico, uma marca”; e na fala de Everaldo, do Giral “A gente precisa de alguém que assuma o institucional, que tenha o perfil do Leonildo, do meu, que não estou mais aqui, alguém com perfil de gestão. Quem assume quando não estivermos mais aqui? A semana passada foi de celebração dos 10 anos”.

A temática de mobilização de recursos também foi outro tema de destaque “O investimento internacional garantia as bases do trabalho da organização. O governo anterior (PT) trouxe possibilidades com editais do governo Federal, com investimentos para estruturação. E de uma hora para outra perdeu-se 80% de investimento de estruturação”, contou Tiago, do Instituto Papai; “Viemos de uma onda próspera de editais do período Lula e Dilma. Hoje os editais estão com recortes que não nos inserimos, como Tecnologia da Informação, Geração de Renda, Formação Técnica para o Mercado (…) as pessoas não visualizam a arte-educação como um mercado de trabalho”, disse Fátima, da Escola Pernambucana de Circo (PE).

O sentimento de reciprocidade que permeou as trocas do Escuta NE mostrou que mais que um serviço o ato de escutar esvaziado de julgamentos sobre certo e errado é um ato de acolhimento, condição primordial para quem quer ajudar. Nos colocar com essa qualidade e abertura encorajou as organizações a investigarem suas questões com transparência e objetividade. Por sua vez, a coragem delas nos estimulou a trazer aquilo que estava invisível e fragmentado nos diferentes olhares sobre a situação de uma forma inovadora. A revelar as partes e apreender o todo. A criar olhos capazes de ver com o corpo, ouvir com o coração, registrando o dito e compreendendo o não dito. A descobrir os olhos que moram nos ouvidos e que no Escuta NE revelaram a oportunidade de criar confiança e fortalecer a cultura de ajuda mútua no campo social.

[1] Organizações atendidas no Projeto Escuta NE: Instituto Papai; Escola Pernambucana de Circo; AMUNAM – Associação de Mulheres de Nazaré da Mata; Giral; CEPOMA – Centro de Educação Popular Maíde Araújo; Polo Ginetta (Pernambuco); IDESQ –  Instituto Nacional para o Desenvolvimento Social e Qualificação Profissional; CEACRI – Centro de Apoio à Criança; Associação para o Desenvolvimento Local Co-produzido; Associação Remanescente Quilombola de Porteiras (Ceará)

[2] Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. (http://www.releituras.com/olresende_vista.asp)

[3] Embora não tenha sido possível agendar o trabalho com a equipe do Em Cena Arte e Cidadania, houve uma escuta muito acurada na entrevista de seleção.

* Consultora associada desde 2012, tem trabalhado com facilitação de processos de planejamento, comunicação, sistematização e aprendizagem de adultos. Preside o Conselho Deliberativo da Fundação Mamíferos Aquáticos e faz parte do Grupo Recife de Aprendizagem (GRA), que realiza iniciatvias para disseminar a Prática Social Reflexiva no campo acadêmico. Antes de ingressar no Instituto Fonte, foi superintendente do Instituto Ação Empresarial pela Cidadania, criado pelo Programa LIP – Leadership of Philantropy (Fundação W.K Kellogg), onde coordenou o Programa Lidera – Programa para Lideranças Empresariais Sustentáveis, o Programa Parcerias entre Empresas e Ongs e o primeiro Seminário Internacional de Cidadania Empresarial e Negócios Sociais. Possui formação em Administração de Empresas e especializações focadas em desenvolvimento de índivíduos e organizações, onde se  destaca o PROFIDES: A Arte e o Ofício de Ajudar o Mundo a Mudar (Instituto Fonte) e o III Social Leadership Seminar (Laspau, Cambridge – MA/EUA). Atualmente é pós-graduanda no programa “Reflective Social Practice”, pelo Crossfields Institute (UK) e Alanus University, em Bonn, Alemanha. Mora em Olinda (PE). Contato: saritta@institutofonte.org.br

 

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