A facilitação do livre movimento das coisas

 

Márcia Thomazinho (1)

Sobre  2015, 2016 e 2017, anos vividos como muitos.  Tempo de entrar formalmente no Instituto Fonte, tempo de selar um namoro que já vinha se desenhando há algumas primaveras, tempo de ir além do lugar “seguro” da gestão de uma OSC e me entregar também à prática da consultoria e da formação.

Pela formação eu já vinha transitando, mas na consultoria, ah, como eu resisti em me dizer consultora, como se a palavra tivesse um peso desproporcional em relação ao que eu queria realizar no mundo. Parei de resistir e me entreguei, dizendo para mim “tudo bem, você pode experimentar isso por um tempo, não tá escrito na pedra”…

E de experimentar essa prática me vieram incontáveis lições, num processo intenso de aprendizagem pela prática, que me virou do avesso e me colocou no “direito” novamente… ou que me mostrou o “direito” que há no avesso.

Nessa aventura de me ver consultora, me ver “facilitadora de processos”, tive a alegria de me encontrar em processos muito ricos, com organizações sólidas e ativas, desejosas por um processo de mudança ou por simplesmente conseguir enxergar mais à frente ou por extrair aprendizagens de uma experiência.

Ao me colocar no lugar de quem facilita processos pude aprender a me colocar ao lado dessas organizações, dessas pessoas e construir com elas um caminho que fizesse sentido, sem chegar com nada muito “pronto” ou “pré-definido”, mas me dispondo a fazer com elas uma leitura do processo que estavam vivendo e sobre qual seria o próximo passo.

Experimentei deixar de lado muitas certezas, aprendi a “segurar de levinho” (expressão precisa que aprendi com Tião Guerra) aquilo que eu já sabia ou aquele desejo que trazia comigo.

Experimentei ter planejado tudo bonitinho e chegar na hora e ver que a coisa tomou outro rumo e que talvez nada daquilo que estava planejado fizesse mais sentido, e a me perguntar ali, ao vivo, ‘qual o próximo passo então? ’. Esse passo só pode emergir do próprio processo, mas ele não é tão óbvio, é preciso desenvolver olhos para ver e uma espécie de confiança e de abertura capazes de sustentar aqueles minutos em que todo o meu plano foi jogado fora e eu ainda não sei o que fazer à frente.

Isso me lembra de algo que aprendi nos meus estudos sobre as Constelações Sistêmicas: a atitude fenomenológica ou a capacidade de ver o “campo” implica em saber que só se pode ver até o próximo passo… isso é tudo o que nos é permitido ver… Ah, e como é difícil sustentar isso! Nossa mente foi treinada para solucionar problemas, para desenhar caminhos, mecanismos e soluções para as coisas. Mas, e quando a gente não quer necessariamente solucionar nada, mas só ajudar a acontecer o próximo movimento possível, o próximo movimento preciso? Aí essas soluções não cabem, ou há um grande risco de elas sobrepujarem aquilo que o processo de fato pede. É preciso se conectar com o que é vivo nos processos para conseguir “facilitar” o seu fluxo, o livre movimento dele em direção ao seu próximo momento. E como? Usando que instrumento? Em grande parte usando a mim e ponto. Uau!

Facilitar o livre movimento pede de nós uma qualidade de confiança e abertura sem igual. Não é algo que eu planejo, nem um “lugar” para o qual eu vou quando desejo ir, não tem botão de “liga e desliga” e nem é algo que se conquista e “pronto, já posso descansar”… nada disso… é um contínuo… é uma prática, algo que me pede presença e dedicação.

Lembro-me de uma fala do Allan Kaplan no Programa Artistas do Invisível, na qual ele trata da facilitação de processos explicando que o grande trabalho não é facilitar, mas sim toda a preparação contínua e necessária para estar ali.

Hoje compreendo profundamente que essa preparação não diz respeito a fazer bons planejamentos, desenhar bons “PPTs” ou bons exercícios, mas sim estar profundamente afinado como o instrumento. Isso é uma “prática”, um exercício mesmo, não é nada que você aprenda com os livros, nem algo que você alcance​ e pronto, já não seja preciso mais nenhum esforço​.

​Não. Pede atenção plena, pede presença, pede conexão, pede sintonia, um tipo de sintonia fina que só se consegue estando pronto a mudar, a deixar a ir, a aprender, sempre. ​

Ah, que bom poder ter me colocado no caminho desta “prática”! Quero cada vez mais conseguir me dedicar a ela com disciplina e constância em quaisquer processos nos quais estiver implicada, afinando constantemente meu instrumento. Que venham mais anos de prática!


Este artigo integra o Relatório de Gestão 2015-2016, um importante instrumento de reflexão e aprendizagem do Instituto Fonte. Para ler outros textos ou baixar o relatório, clique aqui.
(1) Consultora associada do Instituto Fonte desde 2015. Atua em processos de desenvolvimento/aprendizagem organizacional, sistematização de experiências e a investigações no campo do desenvolvimento. Está no campo do Desenvolvimento há 15 anos, onde já atuou na gestão organizacional e de projetos em organizações como: Instituto Auá de Empreendedorismo Socioambiental e Instituto de Cidadania Empresarial. Bióloga, formada pela Universidade Mackenzie, pós-graduanda no programa “Reflective Social Practice” pelo Crossfields Institute (UK) e Alanus University (Alemanha). Tem diversas formações técnicas em Gestão de Organizações do Terceiro Setor e Gestão/Avaliação de Projetos e, mais recentemente, vem se dedicando a formações relacionadas ao Pensamento Complexo e Sistêmico aplicado a processos sociais, como as Constelações Sistêmicas e o Programa Artistas do Invisível. Cursou o programa Profides – Profissão Desenvolvimento entre 2009-2010 (do qual foi posteriormente co-facilitadora na 6ª edição, entre 2011 e 2012). Contato:marcia@institutofonte.org.br